08/07/23

Amor: eufemismo para troca de interesses.

 

               O mantra masculino de que toda mulher é interesseira não passa da mais pura verdade. Pronto, consegui causar alguma emoção em você, certo? Vou explicar melhor: esse mantra também serve para todos os seres humanos da face da Terra. 
 
Temos a constante tendência de associar o interesse à coisas puramente relacionadas ao dinheiro ou status social, então vou elaborar a palavra "interesse" de forma menos denotativa nesse texto. Todas as relações estão pautadas no interesse, mas vamos focar na relação amorosa romântica.

 




             Não, você não ama seu namorado pelo que ele é (vou te falar que não ama nem seu filho por esse motivo... chocado?!), você ama qualquer pessoa pelo que ela retorna para você. Tudo é baseado no modo como você se sente perto dela, não é nunca sobre a outra pessoa e sim sobre você. Sabe a sensação de borboletas no estômago? É a sensação que você está buscando e desejando, não a outra pessoa. Somente a pessoa, pura e simplesmente ela, não é suficiente para amá-la, essa pessoa precisa despertar em você alguma sensação ou emoção para que você a queira, ou seja, tudo depende de como você se sente em relação a ela e não a pura existência dela.

 

            No sentido mais científico ou evolutivo, nós buscamos certas sensações em nossos parceiros; se eles não nos fazem sentir de certo modo, só dizemos que não nos atraem. Uma pessoa de bom caráter e boa personalidade não é suficiente, nós buscamos mais. Queremos sentir borboletas, queremos sentir segurança, queremos sentir que no futuro aquela pessoa será capaz de contribuir com o sustento de uma casa e criação dos filhos, queremos saber o que a sociedade vai pensar sobre nós se vamos estar em um relacionamento com certa pessoa, queremos coisas bem específicas. A verdade é que não estamos buscando apenas "pessoas boas".

 

O amor não existe.

 

            Bom, primeiramente, se você acredita em almas gêmeas, não deveria ter começado a ler esse texto. Sempre vai existir outra pessoa. Sempre. O mundo pode parecer que vai acabar quando se termina aquele namoro, não é? Mas, no fundo, sabemos que passa, porque passa, e nos apaixonamos de novo. Existe uma música que fala especificamente desse assunto, de forma cômica e realista. Recomendo a todas as pessoas escutarem e refletirem sobre a letra (só não recomendo enviar para a(o) namorada(o)rs). Segue o vídeo:

 


 

                Vamos separar as coisas em partes: atração, paixão e amor.

 

                Quando conhecemos uma pessoa e sentimos aquela atração avassaladora, boa parte dessa sensação tem base biológica. A maior parte desse sentimento de querer estar grudado na pessoa tem tudo a ver com nossos genes. Ao sentir o cheiro, segundo alguns estudos, podemos identificar o complexo principal de histocompatibilidade (MHC) do parceiro. O MHC é um conjunto de genes que controla o sistema imunológico. Não é interessante que duas pessoas tenham um MHC parecido, pois isso pode até ser um fator que leva a uma perda gestacional. O timbre de voz masculino também pode ser um indicador de nível de testosterona, por isso há uma preferência feminina por timbres graves. Nossos genes fazem um "match" com os do parceiro. Nesses momentos, nossos corpos conseguem identificar que aqueles genes são uma boa combinação com a nossa própria genética, em outras palavras, a atração é resultado da combinação dos nossos genes em um possível filho, é totalmente carnal e nada tem a ver com algum sentimento. (E sim, isso acontece também com você, mesmo que não queira ter filhos nunca).

 

              Podemos concluir aqui que a atração é pautada no interesse reprodutivo. (Abrindo um parêntese aqui para explicar que esses apontamentos têm base em casais heterossexuais. A lógica com casais homossexuais segue outra explicação evolutiva. Se quiserem um texto sobre esse assunto, deixe um comentário ao final da página).

 

               Já a paixão é uma forte conexão que temos com uma pessoa em que a atração física é alta e algo além disso. Podemos muito bem ter uma atração física por alguém e não ter nenhum interesse em ter algum relacionamento com ela, já que a atração tem o objetivo de produzir um bebê saudável, mas para por aí. Quando estamos apaixonados, além da atração, entram com mais força as influências sociais, econômicas, psicológicas e, claro, biológicas (se você leu outro texto do blog, entende que TODOS os comportamentos humanos possuem influência biológica e ambiental ao mesmo tempo). Uma pessoa que traz vantagens no nosso ciclo ou status social, que tenha comportamentos considerados como responsáveis, sensatos e promissores, faz com que tenhamos um maior interesse em levar a atração física para o estado de paixão, que é o interesse em construir uma relação amorosa com essa pessoa. Juntando esses fatores mais o biológico, que seria o estado em que essa pessoa te deixa perto dela, tudo combina, desde o sexo até os momentos de risadas, carinho, conversas, interesses em comum. Os mecanismos do nosso cérebro relativos à produção de dopamina estão anestesiados por essa novidade fantástica, um sistema de recompensa que chega a ser viciante. Nós estamos apaixonados.

 

                   Podemos concluir aqui que a paixão é pautada no interesse reprodutivo e na sensação de bem-estar proporcionado pelo sistema de recompensa do cérebro, que traz sensações de prazer e satisfação.

 

                   O amor acontece depois dessas duas fases (atração e paixão). É o nome que damos quando estamos com uma pessoa depois de um tempo, quando o sistema de recompensa do cérebro já processou as sensações como corriqueiras e não mais como uma novidade viciante, fazendo com que aquela emoção de borboletas no estômago não exista mais. A saudade de ficar 24 horas longe do seu amor não dói quase fisicamente como antes. O coração não acelera mais quando vê uma ligação ou mensagem dele. Instantes antes de se encontrarem pessoalmente, aquele frio na barriga nunca mais vai acontecer. Apesar de ainda sentir a atração sexual, que de forma menos intensa sempre vai estar presente, afinal, nossos genes nunca mudam. A natureza é implacável, ela quer gerar prole (é o sentido biológico da vida), então vai continuar gerando essa vontade de transar com uma pessoa compatível geneticamente com você. A vontade de transar permanece, mas a paixão não está mais lá, a novidade não está mais lá. Agora, a emoção, a aventura e as incertezas se transformaram em segurança, calmaria, parceria e, acima de tudo, prevalecem os benefícios de uma amizade. Continuamos na relação mesmo sem a paixão, porque a história foi construída. Você se acostumou com a presença agradável daquela pessoa. Ela continua sendo compatível com você em todos os aspectos da vida que importam. Ainda vale a pena continuar porque os objetivos, ideais e valores estão alinhados e provavelmente sempre vão estar, já que as coisas essenciais sobre quem somos não costumam sofrer alterações drásticas. O que chamamos de amor foi construído.

 

                      Podemos concluir aqui que o amor está pautado no interesse reprodutivo e na construção de uma vida com outra pessoa, para compartilhar interesses e objetivos em comum. Essa vontade tem forte influência social, construída ao longo de milênios com costumes, mitos e histórias românticas. Casar com alguém, a ideia de construir uma família e viver feliz para sempre, tem forte influência social, religiosa, histórica, etc. Biologicamente falando, não precisamos ter uma relação monogâmica longa com ninguém, só precisamos reproduzir. A ideia de casamento e amor romântico vem lá de Platão com mitos de almas gêmeas, amor genuíno, religiões, amor romântico, histórias da Disney, felizes para sempre, etc. Temos interesse em manter uma relação assim porque nos foi ensinado. Não somos pessoas bem-sucedidas na sociedade atual se morremos sem nunca casar ou nunca ter filhos. Então, casamos e amamos também com o interesse de satisfazer nosso desejo de sermos bem vistos e inseridos na sociedade.

 

                      Apesar de termos que esquecer a ideia de amor à primeira vista e entender as fontes das relações românticas humanas, não quer dizer que tudo isso precise deixar de ser mágico. E daí que eu sinto vontade de morar com aquele cara só porque sei que as chances de um filho nosso nascer com Fibrose Cística são baixas? Em um momento que nem quero filhos? Importa mesmo os motivos de cada uma dessas coisas acontecer conosco, se o que vale é a história construída, os sentimentos à flor da pele e as sensações maravilhosas e quase mágicas que um relacionamento saudável pode nos proporcionar?

 

                      Saiba que você tem interesses a serem atendidos pelo seu parceiro e vice-versa, saiba que existem motivos totalmente explicáveis para esse sentimento, saiba que não existe amor. Saiba que todos somos interesseiros. Não deixe o conhecimento atrapalhar a magia.

 

                        Segue foto da autora desse texto casando e ignorando completamente o fato de ter feito isso por uma força biológica poderosa que só queria que ela gastasse o preço de uma casa em um casamento de contos de fadas da Disney para, no final, ter finalmente gerado esses dois filhos perfeitamente saudáveis. E não é que valeu a pena? Putz.

 



 

26/04/20

Nós somos o que escolhemos ser ou o que nascemos para ser?



Quando observamos grupos diferentes de humanos, automaticamente nos é obvio pensar que as diferenças de texturas de cabelos, cores dos olhos, cores da pele ou traços dos rostos são biológicas, que todos nascem assim e essas informações estão em seus genes desde sempre. Mas a outra parte, talvez a parte mais importante sobre quem de fato somos, ainda hoje, depois de anos do tema já ter se tornado consenso científico, ele ainda é debatido por quem não procurou saber sobre o assunto. Afinal, nossos comportamentos têm origem genética ou somos influenciados pelo meio em que vivemos?
Vamos falar sobre genética do comportamento, uma disciplina que investiga as influências genéticas e ambientais no comportamento, fazendo pesquisas tanto em animais como em humanos. Essa área tenta descobrir quantos e quais genes influenciam em tal comportamento, como ocorre essa influência e como o ambiente interage com a genética.
O que são genes?


gene é um segmento de uma molécula de DNA, responsável pelas características herdadas geneticamente. Cada gene é composto por uma sequência específica de DNA que contém um código que desempenha uma função específica no corpo. ”

Estudar quais genes são responsáveis pelas cores dos olhos é relativamente fácil atualmente. Se pegarmos o sequenciamento de DNA de várias pessoas de olhos azuis, a parte do DNA que corresponde às cores dos olhos vão ser praticamente as mesmas, não é um 1 gene que define as cores dos olhos, mas sim uma interação entre vários deles (interação gênica), e mesmo assim nós já conseguimos identificar quais são e conseguimos explicar toda a genética de famílias, sabendo quais as chances de um filho ter determinada cor de olhos, somente sabendo as cores dos olhos dos pais e avós da futura criança. Nós já conhecemos os genes que definem as cores dos olhos, assim como diversas outras características físicas.
E sobre os genes que influenciam o comportamento? Será que segue a mesma lógica?
Não é bem a mesma coisa, não existe um gene, ou até mesmo uma interação definida de genes, que caracterize um comportamento. Em cada pessoa a interação de genes para formar uma mesma característica pode ser muito diferente, o que torna esse estudo bem mais complexo de ser feito.
Na imagem a seguir, cada círculo representa uma pessoa e todos os pontinhos dentro dele são os genes. Os pontinhos coloridos representam os genes responsáveis pela característica descrita a cima do círculo. Duas pessoas de olhos azuis vão ter os genes de olhos azuis do mesmo modo, já duas pessoas com o comportamento de timidez vão ter uma interação de genes totalmente diferente que resulta na mesma característica de timidez. Sequenciando o DNA de várias pessoas tímidas não somos capazes de identificar um gene ou uma interação de genes específica e igual na maioria delas, como conseguimos fazer com características físicas.

OBS: A imagem é só um exemplo para mostrar visualmente a diferença entre características físicas e comportamentais nos genes. Timidez e olhos azuis foram escolhidos aleatoriamente para compor a imagem, poderia ser qualquer outro exemplo de característica física ou comportamental.




Inovação e Amplificação genética
Agora que já falamos sobre o que é o gene e a diferença entre como características físicas e comportamentais são expressas por eles, vamos para outra parte.
Você sabia que muitos genes podem permanecer “inativos” durante toda sua vida? Isso pode acontecer porque muitos genes só são ativados quando são expostos a um estímulo externo.
Um exemplo é a capacidade de leitura. Todos os humanos, em regra geral, nascem com a capacidade de leitura, mas nós não nascemos lendo, nascemos com genes que colaboram para esse processo quando somos expostos a um ambiente de leitura, quando é iniciado o processo de alfabetização esses genes são ativados e juntamente, a influência dos genes e do ambiente vão colaborar na expressão da capacidade de leitura.
Esse processo se chama inovação genética, ele possibilita o crescimento da herdabilidade, resultado da ativação de genes até o momento inativos. Assim, a influência genética só começa a acontecer a partir do momento em que o indivíduo é exposto a um ambiente que é propício a ela. Isso quer dizer que todos nós podemos ter vários tipos de capacidades/habilidades que nunca vamos colocar em prática somente porque jamais fomos expostos a um ambiente em que essa habilidade pudesse ser ativada.
Já pensou, você pode ter genes para a capacidade de atirar com precisão invejável, mas jamais vai saber disso porque seus pais nunca pensaram em te colocar em uma escola de tiro? Poderia ser até um atleta famoso, artista, piloto de fórmula 1, dançarino... Nunca vamos saber quantas habilidades de destaque podemos ter “ocultas” em nossos genes, interessante, não?
A fase da vida mais comum para o processo de inovação genética ocorrer é a infância, já que nela tudo é novidade e muitos genes são ativados nesse período.
A amplificação genética possibilita o aumento da amplitude da ação desse gene, ou seja, um gene que já foi ativado tem sua ação aumentada com o passar do tempo.
Depois que o indivíduo é exposto a vários ambientes de ativação de genes, como aula de balé, matemática, leitura, desenho etc. Ele percebe que tem mais afinidade com leitura, por exemplo, então ao passar do tempo ele mesmo seleciona ambientes em que essa habilidade vai ser aumentada, como frequentar livrarias e bibliotecas ou escolher cursar faculdade de letras. Na fase da infância o que predomina é a inovação genética, já na fase da adolescência e adulta a amplificação genética é mais presente.
Esses dois processos nos explicam o porquê alguns traços têm maior influência ambiental na infância e maior influência genética na idade adulta, pois na infância o ambiente ativa os genes e na adolescência a própria pessoa amplifica a ação dos genes ativados escolhendo ambientes propícios a seus próprios gostos e interesses.
Aprendemos aqui como é importante disponibilizar riqueza de ambientes para as crianças, para que vários genes possam ser ativados e ela possa descobrir seus talentos/habilidades/capacidades logo cedo.

Diferenças de comportamentos entre pessoas que vivem no mesmo ambiente

Você pode estar pensando “se o ambiente é capaz de ativar genes comportamentais, como explicar gêmeos idênticos que possuem comportamentos diferentes entre si? Se são geneticamente quase 100% iguais e crescem no mesmo ambiente? ”
Existem muitos pares de gêmeos idênticos que são pessoas muito diferentes entre si, acontece muito de um ser homossexual e o outro hétero como também acontece muito dos dois terem a mesma orientação sexual. Algumas pessoas dizem que essa é a prova de que “não se nasce gay” e na verdade é uma escolha. Será mesmo?
OBS: Quando eu falo aqui a palavra comportamento é no sentido de tudo que nós fazemos e somos no campo da personalidade, habilidades e dificuldades. Existe um certo pastor conhecido pela sua guerra contra homossexuais que insiste em dizer “não existe gene gay, isso é comportamental” no sentido de que é uma coisa que pode ser escolhida ou não, e NÃO é nesse sentido que eu falo comportamento, de jeito nenhum. Comportamento, aqui, é tudo que nós fazemos e somos.
Dizer que não existe um gene gay é dizer o óbvio, em nada isso diz sobre a origem do comportamento já que não existe gene especifico para nenhum comportamento. Não existe gene para orientação sexual, não existe gene para habilidade de desenhar, não existe gene para a dificuldade de resolver problemas matemáticos, contudo, todos esses comportamentos são influenciados pela genética e pelo ambiente ao mesmo tempo, como vamos ver a seguir.
Existem dois tipos de ambientes, o compartilhado e o não-compartilhado. O ambiente compartilhado, que pode ser o ambiente familiar, alimentação oferecida pelos pais ou mesma escola, colaboram para as semelhanças entre os dois irmãos. Já o ambiente não-compartilhado colabora com as diferenças.
Devemos entender que tudo pode ser uma influência ambiental, desde o tipo de música que você é exposto ao amigo da escola. Mesmo irmãos gêmeos vivendo na mesma casa e frequentando a mesma escola têm influencias ambientais não-compartilhadas todo o tempo. Eles não descobrem as mesmas músicas, não vão ter sempre os mesmos amigos, mesmos professores ou vão ter sempre a presença nos mesmos eventos durante toda sua infância e vida.
E não podemos esquecer que mesmo o ambiente sendo muito parecido, a forma como cada indivíduo reage a cada uma das suas experiências ambientais podem ser diferentes, como as impressões digitais. 

Em quais conclusões a genética do comportamento já chegou?
Os estudos feitos nessa área do conhecimento são feitos com gêmeos monozigóticos, dizigóticos e com filhos adotivos, envolve toda uma lógica para a medição que determina a porcentagem de influência ambiental e genética de vários comportamentos.
Claro que também é possível fazer testes de sequenciamentos genéticos para tentar detectar alguma semelhança de sequência genética entre pessoas com o mesmo comportamento, mas como eu expliquei no início desse texto, não é uma forma eficiente de estudo já que os comportamentos são influenciados por uma variação de genes muito extensa e diferente em cada indivíduo.
Vários profissionais fazendo os mesmos experimentos com gêmeos e irmãos diferentes acabam dando resultados muito parecidos, o que colabora para a veracidade dos estudos e teorias. Não vou entrar em detalhes em como a conta da medição da porcentagem é feita nesse texto, pois mudaria o foco, mas vou deixar nas referências uma sequência de vídeos aulas sobre o assunto. Vou listar algumas conclusões interessantes que a genética do comportamento já fez ao longo dos anos de estudos.
Todos os traços comportamentais têm influência genética.
Dificuldade de aprendizagem, ansiedade, tipos de inteligências, traços de personalidades em geral, todos eles possuem uma porcentagem de influência genética. Não existe exceção.
Todos os traços comportamentais têm influência ambiental.
Quer dizer que todos os traços também têm influência ambiental. As estimativas para a influência ambiental são sempre maiores do que zero e também significativamente menores do que 100%. Chegamos à conclusão de que todos os comportamentos têm influência genética e ambiental. Não existe exceção.
A herdabilidade é causada por muitos genes de pequeno efeito
Até hoje não encontraram genes específicos para comportamentos, isso leva a conclusão de que o efeito da influência genética nos comportamentos se dá pela junção de vários genes, o que se chama poligenia.
Agora podemos entender com clareza a questão. “ As moléculas que constituem nosso DNA não traçam nosso destino, mas sob a influência dos estímulos ambientais sofrem arranjos e rearranjos que explicam a incrível diversidade humana. ” - Drauzio Varella 

Nós não somos o que escolhemos ser e nem nascemos destinados a ser quem somos, e sim somos uma complexa interação entre as duas possibilidades.





Introdução à Genética do Comportamento em vídeo:

Matérias interessantes sobre orientação sexual:
https://oglobo.globo.com/celina/homossexualidade-influenciada-por-varios-genes-por-ambiente-mostra-mais-amplo-estudo-na-area-23916177

Referências:
Genética do Comportamento - 5ª Edição - Por Robert Plomin, John C. DeFries, Gerald E. McClearn, Peter McGuffin

FADIMAN, James; FRAGER, Robert. Teorias da personalidade. São Paulo: Harper&Row do Brasil, 1979.

FROTA PESSOA, Oswaldo. Genética e ambiente: o comportamento. In: Conselho Regional de Psicologia. Psicologia no ensino de 2º grau: uma proposta emancipadora. 2 ed. São Paulo: EDICON, 1987. P.41-48.

NOGUEIRA-NETO, Paulo. O comportamento animal e as raízes do comportamento humano, São Paulo: Nobel, 1984.

SKINNER, Burrhus F. Ciência e comportamento. 2 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1970.

20/04/19

Aborto: análise em todos os aspectos

Aborto é um assunto muito discutido nesse século, pois envolve opiniões baseadas em saúde pública, direito da mulher, religião e embriologia.
Vamos discutir as verdades sobre cada uma dessas vertentes usadas para defender ou não a legalização do aborto, ou até mesmo a prática em si. 

O texto é longo, mas vale a pena. Trato do assunto de uma maneira imparcial, mostrando os dois lados das opiniões, de modo que o objetivo não é mudar a convicção, e sim mostrar que podemos entender os dois lados da moeda.

Embriologia: o que o feto já desenvolveu a cada semana

Antes de entrar em uma tour pela embriologia, uma citação de Richard Dawkins, que se encaixa bem no assunto, mostra que podemos enxergar o embrião como algo muito especial,

"As possíveis pessoas que poderiam estar no meu lugar, mas que jamais verão a luz o dia, são mais numerosas que os grãos de areia do deserto do Saara. Certamente esses fantasmas não nascidos incluem poetas maiores que Keats, cientistas maiores que Newton, no entanto, sou eu que estou aqui. Sabemos disso porque o conjunto das pessoas possíveis permitidas pelo nosso DNA excede em muito o número de pessoas reais. Tudo em nós poderia ser diferente em bilhões de possibilidades somente pela organização do DNA. Apesar dessas probabilidades assombrosas, somos eu e você, com toda a nossa banalidade, que aqui estamos..."

 4 semanas

No final da primeira semana após a fecundação, inicia-se o processo de nidação, que envolve a implantação da massa de células na parede uterina. Na segunda semana, a cavidade uterina se especializa com o objetivo de proteger e nutrir o futuro feto. Cresce o mesoderma e os vasos sanguíneos. A massa celular interna transforma-se em disco embrionário, âmnio e saco vitelínico. Vão começar a formar-se as estruturas precursoras das membranas fetais e da placenta. Na terceira semana, estabelece-se o eixo do corpo e cada uma das três camadas principais: ectoderme, mesoderme e endoderme, que dão origem aos seus próprios tecidos e sistemas de órgãos. Na quarta semana, aparecem os arcos branquiais que irão originar a face, faringe, laringe, músculos do pescoço e a união do embrião com o saco vitelínico. Ao final da quarta semana, aparecem as proeminências faciais. As proeminências maxilares e mandibulares pareadas e a proeminência frontonasal, são as primeiras proeminências da região facial.



8 semanas


Rápido crescimento do encéfalo e saliências faciais (rudimentos de nariz, olhos e orelhas). Face em contato com o coração. Brotos dos membros superiores em forma de remo, e inferiores em forma de nadadeiras. Na sexta semana, sua boca começa a se formar, e seu coração rudimentar pode ser ouvido batendo. O seu coração e coluna são visíveis. Cotovelos e placa das mãos com raios digitais, contrações musculares do tronco e membros, saliências auriculares (meato acústico externo). Olhos e pescoço são evidentes. Já responde ao toque. Com 7 a 8 semanas de gestação, o embrião é capaz de realizar movimentos muito simples, devido a medula espinhal já estar desenvolvida. Ele agora é capaz de sentir o toque e desviar, possuindo reflexos. Lábio superior está completo e o nariz é mais proeminente. O palato não está completamente desenvolvido. Pálpebras, olhos e orelhas evidenciáveis.



 12 semanas

Na nona semana, o feto já possui reflexo de dobrar os dedos à volta de um objeto colocado na palma da mão. Começa a sugar o polegar e a formar-se as unhas. Em resposta a um toque na planta do pé, dobra os dedos ou os joelhos para fugir do estímulo.
Ao final da décima semana de gestação, o embrião já se encontra praticamente com todos os órgãos (coração, pulmões, rins, fígado e intestinos). A partir da décima semana de gestação, durante o período fetal, haverá basicamente a maturação e crescimento dos órgãos e sistemas do bebê.
A partir de 12 semanas, a genitália externa adquire as características peculiares ao sexo genético do bebê, apesar de ainda não ser possível identificar o sexo ao ultra-som. Crescem os olhos e as orelhas. Começa a formação dos principais ossos do corpo. Os dedos dos pés e das mãos já estão diferenciados, e as suas unhas surgem.



16 semanas
Da semana 13 a semana 14, o feto é capaz de deglutir (abre e fecha a boca e protui a língua). Com 14 semanas, o feto além de engolir, também urina, suga, abre e fecha as mãos e treina os movimentos respiratórios para o trabalho que seus pulmões vão ter após o nascimento. Sua coluna vertebral já está bem delineada.
A partir da semana 16, os movimentos do feto aumentam, o que é importante para o desenvolvimento dos seus músculos e ossos. Suas feições estão bem definidas e pode-se identificar o sexo do bebê nos exames de ultra-sonografia.


20 semanas

Entre 16 e 18 semanas, começa a fazer caretas, levantar as sobrancelhas e coçar a cabeça. A partir da semana 20, seus movimentos começam a ficar mais coordenados, contrastando com os movimentos iniciais que eram reflexos mais primitivos. É capaz de ficar ereto e impulsionar o corpo para frente. Aparecem os primeiros fios de cabelo. Inicia-se a formação do "vernix caseoso" que é uma camada de gordura que reveste externamente o feto. Esta "capa de gordura" tem a função de proteger sua pele num ambiente aquático. Nessa fase, as orelhas já estão no lugar e o rosto está cada vez mais formado, já com os primeiros fios de cabelo, cílios e sobrancelhas começam a aparecer.
Ainda não consegue abrir os olhos, mas as pálpebras já estão formadas e, a audição está se desenvolvendo, tanto que é nesse mês que o bebê já consegue ouvir o coração da mãe e, a partir do quinto mês, começa a prestar atenção nos sons externos também, principalmente na voz da mãe e pessoas próximas. Os dedos também já estão formados, então é normal as mães verem o bebê chupar o dedo no momento do ultra-som.



Observe durante alguns instantes a última imagem... Se parece bastante com um bebê nascido, não é mesmo? O que você sentiu ao ler tudo que um feto é capaz de fazer desde as primeiras semanas? Aposto que sentiu uma identificação. A partir da oitava semana nós conseguimos identificar no feto feições humanas, ele já tem mãos, pés, um começo de olhos e cabeça. Definitivamente nos identificamos com essas imagens e ficamos impressionados com tudo que um feto tão jovem pode ter logo nas primeiras semanas. É muito fácil pensarmos que um feto de 20 semanas é um ser humano, ou até mesmo uma pessoa, totalmente plena e com todos seus direitos reservados, devido a nossa visualização dessas imagens e do conhecimento de que nele se tem todos os órgãos, cabelo, unhas e até cílios. Mas será que são essas as coisas que fazem dos fetos humanos, pessoas, ou bebês? Será que não é algo que não podemos enxergar em imagens e é bem mais difícil de detectar pela tecnologia? 

A Capacidade de sentir dor

Muitas pessoas que são a favor da legalização do aborto, não são a favor da prática em si, inclusive dizem que nunca fariam o procedimento, mas entendem que a questão de achar certo ou errado deva ficar em segundo plano, pois o problema maior está na saúde pública e na vida da mulher, que é perdida em clínicas médicas clandestinas que praticam o procedimento em países em que ele ainda não é legal.
O argumento mais usado para quem quer defender, não só a legalização, mas também a prática, é o de que, quando um país legaliza o aborto, ele só pode ser feito até 20 semanas de gestação, porque até esse momento, o feto ainda não possui sistema nervoso central, então não pode sentir dor.

Essa afirmação possui meias verdades.
Nos primeiros dias seguintes à concepção, o embrião é um minúsculo aglomerado de células (mórula). O desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso (central e periférico) começa na terceira semana, diferente do que a maioria das pessoas que fazem essa afirmação imaginam, o SNC (Sistema Nervoso Central) não surge após as 20 semanas, ele se desenvolve a partir da terceira semana, com todas as suas partes ao mesmo tempo, como um todo. No desenvolvimento embrionário, todas as partes se desenvolvem ao mesmo tempo e não existem “etapas” isoladas. As principais partes cerebrais, incluindo tudo que consiste o SNC (tubo neural; consiste em encéfalo e medula espinhal) são visíveis em 7 semanas. A partir de então o cérebro começará a crescer e se desenvolver.

Agora que temos em mente que o desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso começa na terceira semana de gestação e todas as suas partes já são visíveis com 7 semanas, entendemos que o desenvolvimento é gradual. No início da terceira semana, o que temos é um início de SNC rudimentar, que vai se transformando em algo cada vez mais parecido com o de uma criança nascida ao longo das semanas. Ele já existe, mas não em toda a sua capacidade. A atividade funcional do cérebro, ou seja, os primeiros indícios de atividade cerebral são percebidos com 5 ou 6 semanas, e consistem em movimentos de extensão ou flexão do colo e da região torácica. Eles vão progredindo gradualmente até que todos os padrões motores aparecem presentes no início do segundo trimestre.
Por isso, as leis determinam a semana 20. Somente a partir dela a atividade cerebral sugere que o sistema nervoso central está formado ao ponto de todos os padrões motores estarem presentes.
A certeza de que o feto sente dor é a partir da semana 20, antes disso, não há indícios de que ele possa sentir, e apesar de não podermos ter certeza, essa afirmação ainda é a mais aceita entre os embriologistas. Porém, somente o fato de um feto não sentir dor, é suficiente para tornar o aborto um ato ético ou moral?

Quem é contra o aborto sempre faz a famosa pergunta: “então, se não sente dor, pode matar?”, logo após outra pessoa explicar o porquê do aborto ser feito na vigésima semana. Depois da pergunta, argumentam que existem pessoas com uma doença capaz de fazer com que elas não sintam dor (Síndrome de Riley-Day) e que mesmo assim, ninguém acha certo matá-las, ou ainda, argumenta que se for essa a lógica, poderíamos dar anestesia geral em pessoas e mata-las, pois isso seria ético e moral, olhando pelo ponto de vista de quem defende o aborto, pelo fato do feto não sentir dor.

Podemos dizer, então, que somente esse argumento não é o suficiente e deve ser complementado. A diferença entre matar uma pessoa em coma, inconsciente ou anestesiada, para matar um feto antes da vigésima semana, é que pessoas nascidas são reconhecidas como pessoas, possuem uma identidade, uma personalidade e são cidadãos, além do fato de que antes de estarem nesse estado anestésico, eles já tiveram  uma consciência, o que não é o caso do feto.


Quando começa a vida?

Vida. Uma palavra tão simples e ao mesmo tempo tão complexa de ser explicada. Qual a definição de vida?

"A qualidade que distingue um ser funcional e vital de um corpo não vivente ou pura e simplesmente da matéria química. O estado de um complexo material ou indivíduo, caracterizado pela capacidade de executar certas funcionalidades incluindo metabolismo, crescimento e reprodução"

Essa é uma das definições mais usadas. Podemos dizer que um alface é vivo, uma formiga é viva, uma bactéria é definitivamente viva... mas células também são vivas. As células de um organismo podem encontrar-se em três situações diferentes: elas podem estar vivas, hibernando – como que adormecidas (por exemplo, células musculares com deficiência de irrigação sangüínea) – ou mortas. Claro que quando dizemos: "célula viva" não é no mesmo sentido que nos referimos a um paciente em um hospital. Um organismo possuir vida não é realmente a pergunta certa quando estamos falando sobre aborto. 

Qual a diferença de perguntar: "quando começa a vida?", "quando começa o individuo?" ou "quando começa o ser humano como pessoa de direito?" 
Todas essas perguntas possuem explicações diferentes. Vamos lá.

Quando começa a vida?

Existem pessoas que fazem essa pergunta pensando em "quando começa a vida humana" e na verdade não é sobre um organismo que ela está querendo saber, e sim sobre a pessoa humana. Mas se for pra responder exatamente o que ela pergunta, a resposta é: a vida, no sentido de existir um organismo com DNA novo de uma determinada espécie, começa quando o espermatozoide fecunda o óvulo.
Cerca de metade desses embriões morre nos primeiros dias, já que é super comum eles não se fixarem na parede do útero e serem expelidos. Sendo assim, a gravidez nem teve chance de começar. E esse organismo que resulta da fecundação não é um indivíduo.

Quando começa o indivíduo?

Uma parte dos cientistas definem o início da vida humana nesse estágio, quando o embrião ou mais de um embrião tem mais de 15 dias da fertilização, pois somente nesse instante não é mais possível o embrião se dividir e dar origem a outro embrião de DNA igual, formando os gêmeos univitelinos. 
Se o embrião quando formado pode dar origem a outros "organismos da espécie humana" até determinado período, então ele não é uma pessoa, não é um indivíduo, mas certamente ele é humano. O que nos faz humanos é nosso DNA, somente isso. Somos seres humanos pois nosso DNA corresponde a essa espécie. Não importa se somos adultos, embriões na tuba uterina, no útero ou mesmo em vidros congelados em um laboratório de células-tronco, todos os embriões são humanos. E por isso ele tem direitos? O DNA nos torna humanos, sem dúvida, mas é ele que nos torna pessoas de direito?

Quando começa o ser humano como pessoa de direito?

Essa pergunta sai do campo da embriologia e pode ir para a metafísica, filosofia... 
Quando fazemos essa pergunta não estamos nos referindo a um embrião e nem a um feto em início de gravidez. Quando fazemos essa pergunta nós já sabemos que um feto pode ser considerado vivo e pode ser considerado humano, mas queremos saber de outra coisa...
Tendemos a levar com muito peso as palavras humano e vida quando na verdade não são elas que importam. Quem nunca ouviu um: "abortar é assassinar, é uma vida, é um ser humano! Como pode você não ver problema em ser um assassino?".
Tem gente que acredita que a vida humana começa somente quando o bebê nasce e isso é só uma maneira errada de interpretar a pergunta... o ser humano começa a ser pessoa quando possui consciência, e é isso que vamos entender agora.

Consciência e o título de pessoa

Quando decidimos se vamos matar um ser vivo, seja ele animal, humano ou vegetal, de forma ética e moral, devemos levar em consideração três coisas: se esse ser vivo é consciente de si e do mundo a sua volta, se ele possui senciência e se ele sente dor. Se ele possui os três requisitos, certamente ele é igual a nós, portanto, não seria ético ou moral matar seres semelhantes a nós, pois eles sendo semelhantes, devem possuir direitos semelhantes, e um dos mais básicos é o direito de viver. Por isso, não nos importamos em matar vegetais (seres vivos, porém, sem os três requisitos) mas nos importamos em matar animais (a maioria tem os três requisitos).

Podemos dizer que o feto até a vigésima semana é consciente, senciente e que sente dor?

Já sabemos que a grande parte da comunidade científica concorda que antes da vigésima semana, não há indícios de que o feto possa sentir dor. O que a comunidade científica não entra em consenso é sobre definir se um embrião ou feto pode ser chamado de pessoa, e não somente de “organismo da espécie humana”, pois essa questão não faz parte da biologia, que é materialista, e sim da filosofia. Somos seres sociais ao mesmo tempo que somos um grande amontoado de células ambulante. Se limitar somente à ciência materialista para nos definir não é coerente.

A definição de consciência no dicionário é: "sentimento ou conhecimento que permite ao ser humano vivenciar, experimentar ou compreender aspectos ou a totalidade de seu mundo interior/ sentido ou percepção que o ser humano possui do que é moralmente certo ou errado em atos e motivos individuais."
O médico e presidente da SBB, Cláudio Lorenzo, professor do Programa de Pós-Graduação de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado no Canadá em ética aplicada a ciências clínicas diz que “na minha opinião pessoal, a vida humana é quando há uma relação com o outro, sentimentos e percepções proeminentes humanos. O embrião até 12 semanas não tem o sistema nervoso para estabelecer qualquer espécie de relação. Um bebê que seja capaz de sonhar e perceber coisas maternas tornou-se pessoa. Essa definição vem de Aristóteles, que definia que nesse período da gestação a criança era gente, ganhava alma. Nesse caso, apesar de o embrião não ser coisa, não posso comparar a questão moral de uma mulher que não deseja prosseguir uma gravidez em relação a algo que tem o potencial futuro de vida”.

Para considerarmos que o feto possui consciência, ele deve experimentar trocas de experiências com outros indivíduos, e isso ocorre somente após todo o SNC estar desenvolvido o suficiente. Estudos mostram que a partir das 28 semanas, o feto responde a estímulos de vozes e também é capaz de sonhar. Quando isso acontece, podemos dizer que ele está consciente de que existe, mas ainda não está consciente do que ele é, ele não identifica o que é o próprio corpo ou o que é o cordão umbilical preso ao mesmo. Para ele tudo é um só, e isso permanece assim até meses depois do nascimento. Na verdade, o processo de consciência e senciência é tão gradual, que crianças menores de 18 meses não possuem autoconsciência, elas não se reconhecem no espelho, não sabem quem são e não se identificam como indivíduos, porém, elas já sentem emoções, sentimentos, e são capazes de trocar experiências com outras pessoas, formando personalidade, mesmo dentro do útero.

Concluímos que um feto de 20 semanas não faz ideia de que ele existe, de que ele vive, de onde está, do que pode acontecer ou do que já aconteceu. Estudos mostram que o feto dentro do útero está em um estado de dormência inconsciente. O baque que ele leva no nascimento é o acordar para a vida mais violento que um ser humano pode experimentar em toda sua história. 

(Crianças pequenas não possuem autoconsciência, não se reconhecem no espelho, não sabem quem são e não se identificam como indivíduos, porém, muitos dos animais que comemos e usamos para entretenimento são capazes de todas essas coisas além de sentirem emoções, sentimentos e trocar experiências com outras pessoas e animais, e mesmo assim a maior discussão é sobre se matar um feto que não possui nada disso e não sobre se é certo matar e usar todos esses animais. Isso é uma amostra do quanto humanos ligam para humanos somente pelo DNA, só por ser sua espécie, e não pelo que realmente importa, mas isso é assunto para outro texto.)
  
A senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. Em outras palavras: é a capacidade de ter percepções conscientes do que lhe acontece e do que o rodeia. A palavra senciência é muitas vezes confundida com sapiência, que pode significar conhecimento, consciência ou percepção. Como o feto de 20 semanas não é consciente, ele não pode ter emoções como alegria, tristeza ou raiva conscientemente.

Se o feto de 20 semanas não é consciente e nem senciente, entretanto, possui o DNA humano, ele pode ser considerado uma pessoa?

A partir do momento que se tem um embrião, também já se tem um código genético único.
Se extrairmos o DNA de um embrião, o resultado vai ser: humano. Mas será que ser humano está necessariamente ligado a ser pessoa?
“O feto é obviamente humano”, afirma o biólogo José Roberto Goldim, ... “A questão é decidir quando ele se torna uma pessoa com direitos e isso a ciência não pode responder, é uma questão filosófica. ”
Dentro da filosofia existem debates sobre o sentido preciso e o uso correto da palavra “pessoa”, e quais os requisitos precisos para se definir se algo ou alguém é uma "pessoa". Na filosofia, uma pessoa é uma entidade que tem certas capacidades ou atributos associados a personalidade, por exemplo, em um contexto particular moral, social ou institucional. Essas capacidades ou atributos podem incluir a autoconsciência, a noção de passado e futuro, e a posse de poder deôntico, entre outros. Também, filosoficamente, uma pessoa é o ser humano como agente moral. É aquele que realiza uma ação moral e aquele que ajuíza sobre ela. O conceito de "pessoa", na filosofia, é difícil de definir de uma forma que seja universalmente aceita, devido à sua variabilidade histórica, cultural e as controvérsias que cercam o seu uso em alguns contextos em diferentes linhas filosóficas. O que se pode tirar disso é que definitivamente somente o material genético humano não é suficiente para poder chamarmos um feto de pessoa. Podemos dizer que ele é uma pessoa em potencial, um estado de desenvolvimento de uma pessoa, mas ele não é, no momento atual de seu desenvolvimento em idade abortiva, uma pessoa.

Para muitas pessoas, um feto precisa ser considerado pessoa desde sua concepção, somente por ter o DNA humano e por estar em um estado de desenvolvimento que ainda não possui os requisitos necessários para tal titularidade. Todos sabem que sem a interrupção da gravidez, o feto, provavelmente, se tornará uma pessoa. Ninguém discorda disso. Sim, um feto sem consciência de si somente está em uma etapa do seu desenvolvimento para adquiri-la, mas esse não é o ponto. Não estamos discutindo em que um embrião de DNA humano irá se tornar e sim o que ele é no exato momento em que se decide fazer um aborto. 

Não se pode comparar com pessoas em coma ou deficientes com fetos, pois uma pessoa em coma está sim, inconsciente, mas esse é somente um estado em que ela se estagnou após já ter adquirido consciência anteriormente. É diferente matar alguém que já esteve consciente, que possui uma personalidade (mesmo que não a exerça no momento do coma) e matar um ser que nunca teve nem consciência nem personalidade. Matar um feto que nunca adquiriu consciência, filosoficamente, é como se ele nunca tivesse existido, pois ele nunca soube o que é estar vivo.

Fetos antes das 20 semanas não possuem consciência, não são sencientes e certamente não podem possuir título de pessoa, portanto, os três requisitos precisos para que seja imoral dar um fim a sua vida não estão presentes.

Por que então, tantas pessoas no mundo julgam abortar como sendo imoral?

Muitas vezes é por falta de conhecimento sobre o assunto. Talvez muitas pessoas que acham errado abortar ainda acreditem que desde a concepção, o embrião pode ser chamado de pessoa, e claro que matar uma pessoa é errado. 
As pessoas acham errado matar quem não é um humano, se esse alguém não tem consciência, senciência ou sente dor? Bem, para todos os seres que não possuem DNA humano a nossa resposta é sempre sim, pois matamos seres vivos sem os três requisitos a todo momento e nem paramos para pensar sobre isso. A questão só muda pelo feto ser humano. 

Por que? Ora, olhe essa imagem novamente. É um feto com 20 semanas. É instintivo do nosso cérebro associá-lo a um bebê ou uma criança. É claro que para uma pessoa que não tem o conhecimento de tudo que está explicado nesse texto (ou simplesmente se recusa a aceitar que somente o fato de se ter o DNA humano não faz de todos os fetos pessoas) vai considerar um assassinato dar fim a um ser que se parece tanto visualmente com um bebê extrauterino. Até mesmo as pessoas que entenderam tudo do texto ainda vão se sentir relutantes em achar moral acabar com a vida de uma pessoa em potencial. 

Se alguém que é fortemente a favor do aborto se deparar com um feto de 20 semanas abortado, em uma mesa estéril, sem vida, é quase certeza que vai sentir uma pontada de empatia ou algum tipo de lamentação, mesmo tendo ciência de que isso não é racional. Simplesmente a pessoa vai reagir aos seus instintos humanos de proteger seus semelhantes, independente do quanto ela saiba sobre o assunto e tenha sua opinião definida sobre.



Abortar está ligado a essa opinião, e não a vida do feto, já que para ele, morrer antes de ter seu SNC desenvolvido o suficiênte não causa dor, tristeza ou qualquer outro sentimento. Ele nem saberia que morreu, pois nunca esteve ciente de que estava vivo. Sendo assim, cabe a cada mãe e a cada pai decidirem se mesmo sem os três requisitos, o feto vale algo moralmente, simplesmente por ter o material genético único, proveniente deles dois. (relembre o texto de Dawkins)
A opinião de uma pessoa sobre ser ético ou não abortar vai depender de sua criação, nível de entendimento em todos os assuntos que envolvem o tema, mas é totalmente compreensível que se depois de saber a fundo sobre todos os aspectos que envolvem abortar, essa pessoa ainda ache errado, afinal, somos programados para ter empatia por nossos semelhantes e temos essa tendência a ser apegados demais ao conceito de que é uma grande importância ter o DNA da espécie humana. 
Mesmo que no momento do aborto o feto não seja uma pessoa semelhante a nós, ainda temos a convicção de que em determinado momento, ela poderá vir a ser. Somos nós, dignos de determinar se isso pode ou não ocorrer? 

Religião

A opinião sobre o aborto ser imoral, além da falta de conhecimento sobre o assunto e a opinião sobre a importância do código genético humano, também está ligada à religião. Em muitas delas o aborto é errado, seja por acreditarem que somente deus pode decidir quando uma pessoa morre (de novo, falta de conhecimento filosófico sobre o que é ser pessoa) ou por acreditarem que cada pessoa possui um espírito, e que esse espirito está presente desde a concepção, sendo esse espírito eterno, é errado outra pessoa dar um fim a ele.
Toda religião é uma questão de fé, portanto, de opinião. Todo mundo pode ter a opinião de que o aborto é errado ou não, mas o fato científico e filosófico é que essa opinião não interfere na vida de uma pessoa (pois o feto não é pessoa), então ela não deve ser imposta.

Para quem acredita que todos nascemos com almas e espíritos próprios desde a concepção, aqui vai uma informação e uma pergunta que raramente vejo alguém fazer para um religioso: você sabia que gêmeos idênticos não são dois embriões desde a concepção? No início, é um só, até a 3ª semana de gravidez o embrião ainda pode se dividir, dando origem a dois ou mais gêmeos. Como fica a questão da alma? Desde o momento da concepção já se tem um embrião de DNA único, já é um humano, e por isso, ele já teria alma, afinal, todo humano tem alma, não é? Mas esse embrião se divide, essa alma não pode também se dividir, porque cada pessoa tem uma diferente, então quando o embrião se divide formando um ou mais gêmeos do nada surge outra alma para cada uma das divisões? Isso não parece um tanto fantasioso? 

Saúde pública e direito da mulher

Um dos argumentos usados para defender a legalização do aborto é que negar às mulheres acesso ao aborto é negar-lhes direito ao seu corpo e a sua vida. O feto pertence ao corpo feminino e a mulher — que como qualquer outro indivíduo é cidadã e soberana para decidir o que deve ser feito, qual caminho seguir e deve ter garantido o direito de escolha.
Pela ótica biológica o feto é uma entidade nova e completa, ele não é uma continuidade do corpo da mulher, ele é um novo corpo. O “meu corpo, minhas regras” não faz sentido na biologia. O feto está ali por um processo biológico natural, não é um intruso. Quem defende esse argumento deveria mudar a estratégia para defender que o feto em idade permitida de abortar, ainda não é uma pessoa e que não possui nem deveres nem direitos como cidadão. 
A razão pela qual as mulheres devem ter direito ao aborto é que elas possuem direito sobre sua própria vida e podem decidir matar a vida dentro dela, já que a mesma está ligada à sua, na gravidez e após a ela, quando se torna mãe. A mulher só pode decidir sobre uma terceira vida pois quem possui essa terceira vida não sabe que a possui, não é uma pessoa ainda. Cabe a mãe julgar certo dar fim a uma vida humana, dado o estado de desenvolvimento que ela se encontra. A decisão dela deve estar de acordo com sua própria consciência, já que o feto ainda não a tem.

A população deve entender que abortar é matar um humano, desde o momento em que o embrião é embrião ele possui DNA humano. Ele é humano. Abortar é matar um humano e isso não deveria importar. O que a população em geral não entende é que o errado em matar um humano (e também crime) não é pelo motivo de estarmos matando uma vida que tem DNA humano e sim acabando com sonhos, com alguém que tem personalidade única, família, círculo social, e principalmente, matando alguém que é igual a nós, consciente de si, com emoções, sentimentos, dores e vontade enorme de continuar vivendo. Matar um humano não é errado só por ele ser um humano e sim por todas as características que faz dele uma PESSOA. E o feto em idade abortiva não possui nenhuma dessas características, por tanto, por essa ótica, pode ser moral e ético matar um ser humano nessas condições. A mulher deve ter esse direito por esse motivo.


Saúde pública

“Segundo o IAG, Instituto Alan Guttmacher, entidade americana que estuda a questão do aborto no mundo, cerca de 1 milhão de mulheres abortam no Brasil todos os anos. Vivemos em um país extremamente desigual, e essa disparidade aparece quando analisamos o aborto no Brasil. As moças e mulheres que podem pagar até cerca de 5 mil reais pelo procedimento conseguem realizá-lo com um mínimo de segurança do ponto de vista médico. As pobres, infelizmente, estão sujeitas a todo tipo de agressão física e psicológica a que a situação clandestina lhes inflige. Entretanto, todas correm riscos ao se submeterem ao procedimento, como mostra a morte trágica e recente de Jandira dos Santos Cruz e Elisângela Barbosa, ambas no Rio de Janeiro.
Do ponto de vista econômico, segundo o ginecologista Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, “os recursos que gastamos para tratar as graves complicações do aborto clandestino são muito maiores que os recursos de que precisaríamos para atender as mulheres dentro de um ambiente seguro e minimamente ético e humanizado”".

Outro argumento bastante utilizado por quem é contra a descriminalização do aborto é que as mulheres iriam passar a adotá-lo como método anticoncepcional. Ainda segundo o dr. Drezett, “em quase trinta anos de ginecologia, não conheci uma única mulher que quisesse experimentar uma gravidez indesejada para saber se é bom fazer um abortamento. Usar esse argumento é tratar a mulher como estúpida”. Bem, é o que temos feito em larga escala.” (Mariana Varella)
A questão de evitar a gravidez também é um assunto muito debatido pelas pessoas, mesmo que a maioria não tenha o exato conhecimento sobre. Afinal, existe método anticoncepcional 100% seguro?

A resposta pura e simples é um redondo não.

O especialista Sérgio Podgaec, ginecologista e vice-presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein diz que  “a eficácia para prevenir uma gravidez depende não apenas da proteção de cada método, mas também de seu uso correto e consistente. A taxa de falha tende a ficar menor à medida que as usuárias se tornam mais experientes em um determinado método, e a consulta regular com o ginecologista tem o potencial de diminuir as possíveis falhas. Porém o risco não será zero. Não existe, até o momento, anticoncepcional 100% seguro”, e Patricia Bretz, ginecologista da Clínica Mais Vitta e mestre em Bioética afirma que “o único método anticoncepcional 100% eficaz é a abstinência sexual ou a histerectomia [remoção cirúrgica do útero].
Mesmo que se use mais de um método ao mesmo tempo, a eficácia não muda. Além de nenhum médico responsável permitir o uso simultâneo de DIU e pílula anticoncepcional, por exemplo, os riscos de falha de cada um (0,7% do DIU e entre 1% e 9% da pílula) continuam existindo paralelamente. As eficácias não se acumulam para passar de 100%, isso não existe. O mesmo vale para casos em que a mulher utilize o seu método de escolha e o homem use a camisinha: as probabilidades de falha do anticoncepcional da mulher e do preservativo do homem (entre 2% e 18%) se mantêm, as eficácias não se acumulam.
Visto que não existe método concepcional 100% seguro e que o ato de abortar pode ser moral para uns e imoral para outros, sendo isso irrelevante para o feto, não há motivos para que a legalização da prática não seja feita, pois a saúde pública e o direito da mulher de decidir sobre sua própria vida está acima de qualquer opinião de qualquer grupo que não sejam elas próprias.


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